Artikel vom 15. Juni 2012

Korrektur vom 23. Oktober 2012

© 2012 fhi

ISSN 1860-5605

Erstveröffentlichung

Zitiervorschlag/Citation:

http://www.forhistiur.de/zitat/1206fonseca.html

Ricardo Marcelo Fonseca*
O deserto e o vulcão — Reflexões e avaliações sobre a História do Direito no Brasil**
“Historiador não é aquele que sabe. É aquele que procura.”
(L. Febvre, O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais, Übersetzung von Maria Lucia Machado, São Paulo 2009, S. 29)

Table of contents

1. Introdução

1O presente texto pretende fazer um balanço da história do direito no Brasil enquanto disciplina presente nas faculdades de direito1 que, nelas, sofre um evolver bastante peculiar e também fazer um balanço desta área do conhecimento que, por si mesma, é dotada de uma história.2 A trajetória das preocupações que envolvem o passado do direito entre os juristas brasileiros tem sido bastante errática desde a criação das primeiras faculdades de direito no Brasil no século XIX. E foi bastante diversa do que ocorreu tanto nos países europeus (que serviram de “matriz”, em muitos sentidos, à nossa tradição jurídica) quanto de países latino-americanos. Esse caráter errático e oscilante da disciplina no Brasil ainda carece de uma melhor análise e interpretação. Com o recente aumento (quantitativo e qualitativo) da importância desta área nas faculdades jurídicas brasileiras, percebe-se uma carência analítica que busque interpretar (ou ao menos tentar fazê-lo) seus limites, as razões de seus descompassos com países vizinhos e com países europeus e também os êxitos que vem tendo nos últimos anos no Brasil.

2O propósito deste texto, então – bastante limitado inclusive pela quase absoluta ausência de estudos anteriores que tenham aberto alguma clareira na compreensão da questão – é, num primeiro momento, buscar compreender as circunstâncias do surgimento da disciplina da história do direito no Brasil no século XIX e as razões dos seus sucessos e, sobretudo, dos seus insucessos desde então (aquilo que desde logo podemos classificar como um ‘deserto’ histórico-jurídico). Num segundo momento, diante da evidência de que atualmente há um importante “renascimento” desta disciplina na ciência jurídica brasileira (o que podemos classificar como um ‘vulcão’ em grande atividade), busca-se fazer um balanço teórico e metodológico de seus êxitos, suas tendências e seus desdobramentos.

2. A história da História do Direito no Brasil

3Ao contrário das colônias espanholas na América, no Brasil não houve, até o momento da independência em pleno século XIX (1822), a instituição de universidades. A formação dos filhos das elites coloniais davam-se somente em universidades européias. No caso do ensino jurídico, sobretudo em Coimbra. Isto teve como efeito lógico a circulação de um direito muito ligado às práticas judiciais, que por sua vez refletiam o pluralismo do direito europeu do antigo regime. No Brasil o pluralismo assumia peculiaridades muito determinadas, à luz das forças sociais presentes. Mas o fato é que somente com a independência (que não ocorreu num processo tão conflitivo como em alguns vizinhos da América Latina, mas num processo de certa continuidade, visto que o primeiro “imperador” do Brasil foi ninguém menos do que o filho de D. João VI, Rei de Portugal, o príncipe D. Pedro I, que alguns anos mais tarde abdica e assume o trono em Portugal como D. Pedro IV) é que efetivamente é colocada a tarefa da instituição de Faculdades de Direito no Brasil.

4Tudo tem início na Assembléia Constituinte3 que se segue à independência, quando grande número de deputados (a maioria deles formados na faculdade de direito de Coimbra) protagonizam grande debate sobre a natureza do ensino jurídico no Brasil, abordando temas variados como sua função (tudo, desde o início, indicava para a necessidade da formação de quadros burocráticos para o Império), o uso e as funções do Direito Romano (quando as posições dos deputados oscilam entre o realce central de seu papel e sua inutilidade) e, sobretudo, a localização dos primeiros cursos jurídicos (em que, após cerrado debate, prevalece desde então a idéia de haver um curso em Olinda, no Nordeste brasileiro, e outro em São Paulo). Silva Lisboa, depois Visconde de Cairu e um dos primeiros grandes juristas brasileiros, é protagonista nesta fase do debate. Depois de tramitar na “Comissão de Instrução Pública” e sofrer algumas emendas, o projeto é aprovado pela Assembléia. Todavia, alguns dias depois da aprovação a Assembléia é dissolvida. Na sequência da outorga da Constituição Imperial de 1824,4 um decreto de 9 de janeiro de 1825 estatuiu, porém, a criação “provisória” de um curso jurídico no Rio de Janeiro (que em verdade não acabará se efetivando).5 Para ele, entretanto, foi concebido um conjunto de disciplinas, bem como foram preparados Estatutos (os Estatutos do Visconde de Cachoeira6) que terão um papel importante quando, pouco mais tarde, forem efetivamente implementados os primeiros cursos jurídicos brasileiros em Olinda e São Paulo.

5Embora este curso de Direito não tenha sido efetivamente implementado (na sede da Corte imperial) o perfil que ele deveria ter provocou também importante debate na Assembléia Geral Legislativa. E houve aqui uma proposta de disciplinas do curso bastante peculiar. Buscava-se, neste modelo, uma formação “teórica e prática”, e para tanto os conteúdos de história estavam muito presentes: haveria uma disciplina de “história da legislação nacional”, outra de “história das legislações antigas e seus efeitos políticos”, bem como a proposta de uma “história filosófica e política das nações ou discussão histórica de seus interesses recíprocos e suas negociações”.7 O direito Romano, apesar das acesas discussões mais uma vez ocorridas, fica de fora desta proposta.

6A história do direito aparece neste momento inicial de germinação, como se vê, como componente necessário da formação dos juristas, ao menos para os deputados do jovem império. Sem entrar no debate sobre o tipo de conhecimento (do ponto de vista teórico e metodológico) que se pensava em produzir nestes disciplinas, o fato é que parecia que o componente histórico era visto como inseparável, ao menos neste momento, da “Bildung” do bacharel.

7Mas este momento foi breve. Após tramitar no senado o projeto modifica-se completamente e as ênfases disciplinares (inclusive aquelas que diziam respeito aos “estudos históricos”) são completamente modificadas. No final das contas, assim, os Estatutos do Visconde de Cachoeira não são utilizados nos primeiros cursos que efetivamente funcionarão no Brasil independente (ao menos no que diz respeito às disciplinas).

8E dessa forma implementa-se um currículo em Olinda e São Paulo sem a história do direito e também sem o Direito Romano. O perfil prático – voltado à formação de quadros burocráticos próprios, e não de intelectuais – fica claro desde o início. O que deveria mover o ensino jurídico – esse foi o discurso hegemônico à época – era aparelhar o jovem Estado recém-independente com pessoal especializado.

9A história do ensino jurídico no Brasil do século XIX certamente passa por etapas distintas. Até meados do século – segundo certo consenso entre os autores – havia uma fase de grande precariedade, tanto nas instalações (tanto em São Paulo quanto em Pernambuco utilizavam-se mosteiros – sem que seus antigos habitantes tivessem ainda se desalojado), quanto no corpo docente e discente, quanto também nas metodologias e na organização, quanto, finalmente, na própria estrutura curricular (que Clóvis Beviláqua vai qualificar de “bisonhos arremedos de Coimbra”). Isso não significa, entretanto, que o ensino jurídico do Brasil do século XIX não fosse controlado de perto pelo Estado. De fato, era assunto do próprio parlamento brasileiro a determinação ou aprovação o uso de compêndios para as cadeiras ensinadas pelos lentes, bem como era debatido o próprio desempenho das faculdades, ao longo de todo o século XIX. Tudo isso levou à ocorrência de várias reformas do ensino. Dentre estas reformas, há uma muito importante no ano de 1854 que, além de proceder à transferência da Faculdade pernambucana de Direito de Olinda para Recife, cria disciplinas novas (para ambas as faculdades), como Direito Administrativo e Direito Romano.

10Todavia, o Direito Romano não desempenhará no Brasil – como não desempenhava exatamente na Europa deste período – uma função propriamente histórica, mas sim uma função dogmática, como mais tarde será evidenciado de modo exemplar nas reflexões da pandectística alemã. O ‘molde’ téorico constituído pelo Direito Romano, sobretudo na apropriação que fazia do direito privado contido no Corpus Iuris Civilis, assim, era muito mais direito vigente do que direito histórico. Com isso se quer notar, então, que a inserção do Direito Romano no currículo das Faculdades em 1854 não implicou, como talvez se pudesse suspeitar, numa inserção de abordagens históricas na formação dos juristas brasileiros da época.

11Já no final do século XIX é que ocorreu, finalmente, o advento das disciplinas de história do direito nas faculdades: por primeiro no ano de 1885 (na Reforma Franco de Sá), seguida por aquela ocorrida no ano de 1891 (Decreto 1232-H de 2 de janeiro de 1891 – Reforma Benjamin Constant), logo na esteira da grande mudança institucional e política decorrente do fim do Império e o advento da República no Brasil (em 1889). Já neste novo contexto, em 1895 (Decreto 314), com a reorganização dos currículos das faculdades e direito, permanece ainda a cadeira de “História do direito especialmente do direito nacional”. Todavia, esta brevíssima história (que na verdade começa em 1885) tem um desfecho muito veloz: no ano de 1901 (Decreto 3.903 de 12 de janeiro de 1901) a disciplina de história do direito foi suprimida.

12Foram pouco mais de 15 anos de existência, precisamente nos últimos anos do século XIX (e nos inícios do século XX). No Recife, onde foi mais cultivada no período, a história do direito apareceu fortemente marcada pelo evolucionismo/naturalismo spenceriano, que, como se sabe, estavam bem de acordo com os ventos cientificistas que sopravam (sobretudo em Pernambuco) no ensino jurídico brasileiro. O fruto desta fase pode ser bem representado principalmente pelo conhecido livro de Isidoro Martins Junior,8 que permanecerá por muito tempo como uma referência para os poucos que, a partir do início dos anos mil e novecentos, sentiam curiosidade pela história do direito.

13Ao longo do século XX as academias jurídicas brasileiras assistem a um grandioso silêncio no que diz respeito aos estudos histórico-jurídicos. Exceções acontecem aqui ou ali, onde personalidades científicas dotadas de alguma curiosidade e sensibilidade, e provenientes das disciplinas da dogmática jurídica, promovem seu estudo e seu ensino (embora dentro de marcos metodológicos isolados e intuitivos). Exemplo dessas iniciativas é o que ocorre no Rio de Janeiro e com o curso do professor Haroldo Valladão. A história do campo jurídico ainda ocupa algum espaço de reflexão ao longo do século XX no pensamento de certo veio da filosofia do direito brasileira (Miguel Reale, Nelson Saldanha, Machado Neto, etc.), mas – e esse ponto é relevante – dentro dos marcos e das preocupações teóricas da própria filosofia do direito (uma filosofia atenta à temporalidade, sobretudo à temporalidade das idéias). História do direito – tal como ocorria neste mesmo período na Europa e em muitos lugares da America Latina – ainda não era feita no Brasil.

14Será na última década do século XX que começa a surgir uma sensibilidade nova com relação à história do direito. No início dos anos 1990, muitas importantes faculdades de direito (como naquela da Universidade de São Paulo, na Universidade Federal do Paraná, na Universidade de Santa Catarina e na jovem Faculdade de Direito da UNIRIO, por exemplo) inserem-se disciplinas de história do direito (ou de “história do pensamento jurídico”) com estatuto próprio e diverso seja das abordagens do Direito Romano, seja das abordagens da Filosofia do Direito. É nesse ambiente – movido por ares de renovação e por uma necessidade marcante de sair de um normativismo fechado que caracterizava em geral a academia jurídica brasileira na época – que advém um importante advento normativo, que impulsionará a “abertura” das abordagens jurídicas e de uma mudança sensível no próprio ensino jurídico: tratou-se da Portaria/MEC 1886 de 1994 – encarregada de estabelecer as diretrizes curriculares para os cursos de direito – que inseria a presença da abordagem teórica na formação do jurista bastante relevante (as então chamadas – a nosso ver inadequadamente – disciplinas “propedêuticas”). As faculdades de direito brasileiras deveriam, a partir de então, inserir as disciplinas teóricas nas grades das faculdades, diante do reconhecimento no sentido de que formar um jurista apenas nos quadros de uma dogmática jurídica estrita era completamente insuficiente. O curioso, porém, é que a Portaria 1886/1994 do Ministério da Educação não inseriu, como disciplina que passava a ser obrigatória nos cursos jurídicos, a História do Direito. A introdução nas faculdades deste tipo de análise – mesmo nesta época – ainda dependia da sensibilidade de algumas das instituições de ensino.9 Finalmente, no ano de 2004 a Portaria 1886 é substituída pela Resolução/ Conselho Nacional de Educação 09, de 24 de setembro de 2004, que retoma e amplia a normatização anterior e insere a necessidade de conteúdos (e não mais, necessariamente, de disciplinas) “formativas” e teóricas, estando entre eles, finalmente, os conteúdos de história (junto com antropologia, psicologia, etc.). Naturalmente que, a partir disso, o imenso contingente das faculdades jurídicas brasileiras vai progressivamente inserindo esta disciplina nas suas grades curriculares e a história do direito vai assumindo progressivamente um lugar de destaque na formação dos jovens juristas brasileiros. Como se vê, foi necessária, assim, a virada do século XXI para que a história do direito pudesse finalmente ocupar um lugar ao sol no amplo espectro do ensino jurídico brasileiro.

3. Pensar sobre o deserto: algumas hipóteses sobre o ocaso da Hhistória do Direito no Brasil durante os séculos XIX e XX.

15Ao olhar para o passado, o historiador do direito, por vício de sua função, não resiste a tentar entender e interpretar as razões pelas quais, de modo inusitado (e diferente do que ocorreu, por exemplo, nos países vizinhos da America Latina) a história do direito teve nos séculos XIX e XX um percurso tão peculiar. Por que aqui esta disciplina não teve a fortuna (nos currículos das faculdades e na reflexão acadêmica) que teve em tantos outros lugares (Argentina, México e Chile, somente para ficar com alguns exemplos)? Lanço, por isso, algumas hipóteses (que são meramente exploratórias) sobre os motivos que ensejaram este deserto para a disciplina da história do direito.

16A primeira hipótese diz respeito às funções que a disciplina da história do direito pode desempenhar (e geralmente desempenhou) a partir do século XIX no que diz respeito à afirmação de uma nova ordem política e social (decorrente das revoluções liberais, na Europa, ou decorrentes dos movimentos de independência, na América Latina). De fato, como nos lembra António Hespanha10 (para o caso português), a disciplina histórico jurídica ao longo do século XIX tinha um sentido muito preciso de ratificar, no plano intelectual, as transformações que estavam ocorrendo nos planos social e político, de modo a confirmar os estatutos daquele “mundo novo” e firmar a diferença com relação ao passado (seja ele do “ancien régime”, seja do passado colonial). Tratava-se de construir um discurso novo para firmar uma tradição específica – que estava sendo inventada naquele momento. Mais do que em qualquer época anterior, era o caso de reafirmar os novos “sentimentos nacionais”. Neste novo plano, a história do direito tinha a clara função de a um só tempo reforçar a nova ordem e de polemizar com a velha.

17Ocorre que no Brasil, todavia, não houve esta necessidade. Ao contrário de nossos vizinhos (e como já foi rapidamente mencionado acima), o nosso processo de independência no século XIX não decorreu de uma grande “ruptura institucional” (afinal, os conflitos que ocorreram tiveram outra dimensão e quem permaneceu no poder foi o filho de D. João VI, D. Pedro I, que aliás, depois retornará a Portugal), de modo que, apesar de um anti-lusitanismo marcante naquele contexto, não se pode classificar esta época como sendo um verdadeiro “divisor de águas”. De outro lado, a “ruptura” ocorrida com a proclamação da República e o fim do Império (em 1889) foi, de acordo com vasta historiografia, um movimento das elites para as elites, sem nenhuma forma de participação popular e, portanto, sem a necessidade do estabelecimento de formas de legitimação. É emblemático, por um lado, que foi exatamente no contexto de transição entre o império e a república que surge pela primeira vez (e modo efêmero, como vimos) a disciplina de história do direito nas faculdades, mas é igualmente emblemático que poucos anos depois do advento da república ela já desapareça, quase sem deixar rastros. A história do direito no Brasil deste período, ao contrário de muitos lugares, ficou sem função. Não havia exatamente uma “nova ordem” a ser afirmada (ao menos não uma ordem completamente diversa da anterior), nem no caso da independência (no momento em que as faculdades estavam sendo criadas) e nem no momento da instauração da república já no fim do século XIX (no momento em que houve importantes reformas e ampliações nas faculdades de direito).

18Há ainda uma segunda hipótese acerca dos motivos pelos quais ocorreu por quase dois séculos este “deserto” para a história do direito. E ele diz respeito à centralidade e o papel desempenhado, a partir de um determinado momento, pelo direito romano no Brasil.

19Como vimos, a cadeira de direito romano é instituída no ano de 1854 nas faculdades do império e, a partir daí, começa a ter uma vida contínua e quase ininterrupta na formação dos juristas brasileiros. Penso que este papel cresce em todo o contexto de discussão do projeto que vai culminar com o primeiro código civil brasileiro (promulgado em 1916 e vigente a partir de 1917), em vista das referências teóricas que então inspiravam a tradição civilística brasileira. Dentro de tais tradições teóricas, a romanística tinha uma função central: tal como ocorrera em vários lugares da Europa (mas sobretudo na Alemanha) o direito romano era visto como o tecido doutrinário e científico a ser trabalhado pela dogmática jurídica (sobretudo de direito privado). E tratava-se de uma dogmática abstrata, conceitual e sofisticada: o direito romano havia sido recepcionado no século XIX (completando um destino longo, em que as várias e diferentes formas de recepção se davam no ambiente europeu desde a Escola do Glosadores, na segunda Idade Média) como parte de um discurso “científico” (e aqui se toma o termo “ciência” ao gosto do que se pensava e concebia naquele século). Ou seja, o legado romano era retomado para constituir um tecido científico que pudesse ser capaz de dar uma base segura ao direito vigente, que pudesse dar esteio à dogmática jurídica presente. O direito romano era (para usar o título da grande obra de Savigny nos anos 1840) “direito romano atual”. Com isso pensava-se no direito romano menos como um direito histórico, como um direito distante do mundo moderno por praticamente dois mil anos (dois mil anos nos quais muito aconteceu, inclusive a experiência jurídica medieval, dotada de tantas especificidades). Ou então, quando se fazia nesse tipo de abordagem “romanista” algum tipo de historicização, ela não deixava de ser marcada por toda a sorte de anacronismos e por continuidades forçadas, que transformavam o mundo romano quase que num antecedente imediato do mundo burguês moderno. O direito romano, não sendo “histórico”, transformava-se facilmente em “dogmática” (ou um supedâneo da reflexão dogmática). Os cursos de direito romano, assim, sempre serviram muito menos para historicizar e localizar temporalmente a riquíssima experiência jurídica romana e muito mais para serem uma espécie de “introdução” ao conhecimento da dogmática do direito privado. Até hoje é muito comum nas faculdades mais tradicionais, de fato, que as “cadeiras” de direito romano estejam fixadas11 em departamentos de direito privado ou de direito civil no que em departamentos de teoria ou filosofia do direito. E, “mutatis mutandi”, boa parte da civilística brasileira até hoje tem fortíssimas bases “romanistas”, o que também sustentou e deu grande sobrevida “disciplinar” ao próprio direito romano.

20Nesse contexto – com a presença forte do direito romano – pensou-se que a presença de uma disciplina como a “história do direito” seria uma forma de sobreposição. Afinal, vislumbrava-se que a experiência jurídica pretérita por excelência – aquela mais rica, mais sofisticada e que se mantinha até hoje como uma meta para os contemporâneos – era a experiência romana e somente a experiência romana. Pouco se imaginava que se pudesse dizer sobre a época medieval (embora tivesse ele durado mais de mil anos...) e mesmo sobre o período moderno. Na era moderna, somente o momento das codificações pós-revolucionárias é que assumiam uma grande importância – embora não raro, aliás, estas “codificações” napoleônicas fossem classificadas como procedimentos diretamente inspirados nas iniciativas romanas (de Teodósio, Justiniano, etc.). Mesmo sobre as especificidades da história do direito no Brasil pouco interesse se manifestava. Com tudo isso, enfim, aquilo que se podia esperar como abordagem histórica foi reduzido e fortemente enquadrado naquilo que se poderia estudar na cadeira de direito romano. Todavia, como as especificidades da abordagem do direito romano eram severamente limitadas tanto pelo seu espectro temporal quanto pela sua tendência de “atualizar” para o direito vigente o legado romano (incidindo, como vimos, em graves anacronismos e paradoxos), pouco sobrava para uma abordagem efetivamente histórico-jurídica.

21Em tal ambiente, o solo era estéril e as estações eram permanentemente inapropriadas para a semeadura. O deserto era amplo e assim se manteve até final do século XX, como vimos.

22Quando finalmente nos inícios do século XXI este deserto foi superado, porém, a história do direito passa a ter uma fase prolífica, rica e plural. Talvez impulsionada pelo lugar pedagógico crescente da cadeira (o que, em verdade, pode implicar num crescimento desorientado) e em parte impulsionado por um conjunto de iniciativas e interlocuções acadêmicas sólidas que começar a ter lugar, pode-se dizer que há uma explosão na disciplina – explosão que é metodológica, temática, de estilos e de tendências. Deixado o deserto, que ficou para trás, parece que agora existe um vulcão em permanente erupção. Avaliar a força desse vulcão é a tarefa que agora se coloca.

4. Avaliar o vulcão: tensões e dualidades na História do Direito no Brasil hoje.

23Com o “renascimento” da disciplina – que se dá de modo forte e decidido – a área no Brasil acaba tomando alguns contornos peculiares. Como claramente ocorre hoje uma fase de implementação e consolidação do campo da história do direito como disciplina e campo de saber, o que se nota atualmente é a coexistência de uma série de tensões (ou dualidades), por vezes de tendências contraditórias, que atravessam a área. Este item tentará avaliar e explicar duas dessas principais tensões “imanentes” que, pela sua abrangência, podem dar um perfil do momento atual da história do direito no país.

5. História do direito e sua função: ratificação da dogmática x crítica da dogmática.

24É fortemente sedimentada no Brasil uma tradição acadêmica segundo a qual a abordagem da dogmática jurídica – em qualquer de suas disciplinas que seja – deve ser precedida por uma “abordagem histórica” (ou “escorço histórico”). É mais do que comum, por isso, ao se olhar um manual de disciplina jurídica, vislumbrar-se o capítulo introdutório no qual é apresentada a “linha do tempo” do comércio, da propriedade, da família, do trabalho, ou então da arbitragem, do franchising, etc. Geralmente o ponto de partida é um passado muito remoto (os fenícios, os egípcios ou os babilônicos), com uma parada obrigatória na época da Roma clássica (quando, como sempre, é dada uma “elaboração” jurídica – sempre recitada em latim – para qualquer instituto que seja), seguida de um salto muito rápido sobre o período da Idade Média (que, embora longo, sempre tem pouco a dizer sobre os institutos jurídicos que serão abordados no manual), para na sequência haver uma “retomada” na época moderna do “caminho normal” dos institutos, que costumam ser acelerados ou lapidados pela gloriosa época em que ocorreram as declarações de direitos e as codificações. Tudo isso é seguido, em regra, por abordagens que privilegiam a partir dali os diplomas legislativos (os códigos nacionais, as Constituições, os decretos eventualmente pertinentes) para enfim culminar o processo desta abordagem histórica com o seu ponto mais alto, o seu ápice – a normatização atual (e vigente) sobre o instituto (ou disciplina) que está sendo estudado. O último advento legislativo (a Constituição, o código, a lei pertinente) é apresentada como um monumento. É a última etapa de um processo milenar de lapidação e aperfeiçoamento. Depois de tantas idas e vindas pelos séculos, e após ser batizada com a água benta da racionalidade moderna, os institutos jurídicos atualmente vigentes são apresentados como ponto de chegada inevitável, incontornável.

25Percebe-se então, nessa tradição manualística, que os juristas brasileiros de um modo geral habituaram-se a “fazer uso” da história de um modo instrumental: a história “servia” ao jurista para “demonstrar” a inevitabilidade de um determinado instituto jurídico do presente por meio de sua linear e homogênea “trajetória histórica”. Os conceitos jurídicos, nesse procedimento, são colocados numa viagem tranqüila, sem sobressaltos, que desenha um conteúdo de progressivo, de refinamento conceitual crescente, de incremento de civilização (ou de racionalidade), que deságua de modo natural na atualidade, que é vista então como coroamento e culminância de um processo histórico de desenvolvimento do direito (ou de dado conceito jurídico). Os institutos jurídicos atuais aparecem assim como eternos, imanentes ao devir humano, intrínsecos à construção de uma não disfarçada (embora difusa e imprecisa) noção de “natureza humana”, que então carrega consigo, sob o marco da eternidade, uma juridicidade intrínseca (seria da natureza do homem organizar-se em um Estado ou ser proprietário, por exemplo).12

26Muito do que se fazia (e se faz) nestas “introduções históricas” das disciplinas dogmáticas foi transplantado para “manuais” de história do direito. Em alguns deles, é essa a trajetória do direito: linear, progressiva e meramente preparatória da atualidade. O processo histórico do direito serve para um propósito: “explicar” (do modo mais fácil e coerente possível) o direito de hoje. Eventuais complexidades, rupturas e descontinuidades do processo histórico-jurídico passado são ignoradas. Afinal, o propósito não é complexificar o passado, mas sim explicar – e justificar – o presente.

27Naturalmente que as conseqüências teóricas e políticas desse tipo de abordagem ficam evidentes. Num plano teórico, a marca é a ingenuidade teórica e metodológica. Aliás, o problema do método geralmente sequer é colocado; a relação sujeito/objeto é dada como evidente, assim como as estratégias de apreensão do objeto (neste caso, objeto histórico-jurídico) são intuitiva e automaticamente aceitas. É como se não houvesse qualquer complexidade no ato do conhecimento em geral e no conhecimento histórico em particular. A verdade sobre o passado do direito é, ingenuamente, meramente “apresentada”. Já num plano político, fica fácil verificar como estas abordagens “preparatórias” do presente (“escatológicas”, para usar a expressão de Hespanha), ao naturalizarem a atualidade, estabelecem com este mesmo presente uma indisfarçável relação de empatia.13 O presente é mitificado, pois além de ser resultado inevitável de todo um processo histórico, ele é apresentado como incontornável. O direito vigente, assim, é ratificado por todo o processo histórico e é tido como o resultado de um processo de sedimentação secular. O presente, como se vê, é geralmente tido como o melhor dos mundos possíveis...

28A partir deste momento estes manuais, a partir do capítulo 2, podem navegar tranqüilos em seus temas dogmáticos, pois o capítulo da “introdução histórica” já terá demonstrado a importância indiscutível (pois sufragada pelo processo histórico) daquele tema do direito vigente que então passará a ser analisado...

29Pois se de um lado este tipo de abordagem ainda campeia no Brasil (tanto nas ainda renitentes “introduções históricas”, como também em vários dos manuais da própria disciplina histórico-jurídica), de outro lado percebe-se – dentro do campo de tensões já anunciado – que existe uma forte tendência contrária. E aqui deve ser registrada a forte influência crítica de alguns autores estrangeiros que hoje são lidos e tomados a sério no Brasil e que, em seus próprios procedimentos historiográficos, dão um outro tom e outro viés para as funções da historiografia jurídica (como Michael Stolleis, Pietro Costa, Paolo Cappellini, Carlos Petit, etc.). Mas dentre todos, dentro deste outro campo de abordagem, creio que a influência de dois historiadores do direito europeus se sobressaem: Paolo Grossi e António Manuel Hespanha. O primeiro, já traduzido de modo significativo no Brasil,14 traz mensagem forte sobre o papel crítico, relativizador e dismistificador do ofício do historiador do direito, que é visto por Grossi como aquele que deve desempenhar o papel de “consciência critica” dos juristas do direito positivo. Já António Hespanha – com obra que circula profusamente no Brasil há tempos, tanto em faculdades de história como em faculdades jurídicas15 - também já há muito tempo adverte para o papel nocivo que uma historiografia jurídica mal informada do ponto de vista metodológico pode desempenhar, lembrando das implicações deletérias tanto de uma “história das fontes” quanto de uma “história da dogmática” (que acabam se transformando geralmente em mera história das leis ou mera história de grandes escolas jurídicas) que não leve em conta os contextos complexos (e as rupturas e descontinuidades) que marcam o passado jurídico.

30Com eles (dentre outras referências, que além da historiografia jurídica de modo mais estrito vêm também da filosofia, da sociologia ou mesmo da história social ou cultural), a historiografia jurídica brasileira acaba também sendo dotada de um perfil que aponta para uma outra função e, naturalmente, para outra identidade como disciplina. Ao invés de confirmar e ratificar o direito vigente, a disciplina passa a ter mais a função de “estranhamento” com o passado (talvez também pelas difusas influências do saber antropológico), de uma relativização dos percursos no tempo. Assim, a relação com o presente também é diferente: embora seja um ponto de chegada (ou de partida...) inevitável, o conhecimento histórico-jurídico tem muitas vezes a função de criticar e desdogmatizar as opções do direito presente, mostrando sua contingência e sua precariedade. Nesta outra ponta, portanto, a história do direito se mostra claramente como uma disciplina crítica.

6. A história do direito e suas formas de abordagem: grandes sínteses x abordagens analíticas.

31O problema da forma como as abordagens da história do direito vêm sendo feitas nos últimos anos não se desprende tanto da “função” que esta disciplina acaba tendo no Brasil (como foi analisado no subitem anterior). Isso porque se se entender que a “função” da historiografia do direito for fazer um panorama da experiência jurídica no tempo (com uma largueza temporal capaz de, num punhado de páginas, abarcar alguns milênios de passado do direito), com aquela finalidade já mencionada de “desembocar” de modo mais ou menos natural no presente, então a forma de abordagem será – e não poderá deixar de ser – a de um manual ambicioso, que busque fazer grandes e pretensiosas sínteses. E isso, de fato, tem existido muito no Brasil. O passeio por uma livraria especializada pode, às vezes, surpreender o curioso pela quantidade enorme de “sínteses” do passado do direito numa área que, como já dito e repetido, ainda está em fase de consolidação.

32Creio, porém, que há uma outra razão (um tanto mais ligada pura e simplesmente a razões econômicas) que expliquem uma certa profusão de abordagens de síntese no Brasil: é que com a enorme multiplicação do número das faculdades jurídicas no país (em uma nota de rodapé anterior já se mencionou que hoje temos mais de 1.100 faculdades jurídicas em todo o território nacional) naturalmente tem como efeito a existência de um enorme contingente de estudantes de direito. Estudantes que, obviamente, constituem-se num potencial mercado consumidor do ponto de vista editorial. Em outros termos: se há muitos estudantes de graduação em direito (e há muitas faculdades que ofertam disciplinas de história do direito), abre-se uma necessidade de consumo de livros de síntese na disciplina de história do direito para satisfazer esse novo exército consumidor dos cursos de graduação. O problema é que quando o surgimento de livros ocorre por esta razão, digamos assim, “mercadológica”, o ‘produto’ deve assumir a melhor forma possível para o ‘consumidor’. Não raro, por isso, os livros em questão tendem ao maior esquematismo (e, consequentemente, ao simplismo) que se possa imaginar. Afinal, se o livro foi feito para ser ‘consumido’, ele deve ser feito de um modo que seja bem “digerível”. O grande problema é que aquilo que eventualmente pode satisfazer o ‘consumidor’, nem sempre vai ser o ideal para a própria área de conhecimento (se a olharmos não meramente como um campo de mercado, mas sim como um campo acadêmico em que o que mais vale é a qualidade das idéias e das abordagens).

33Essas observações, contudo, exigem que se faça também uma digressão: não quero aqui desenvolver um discurso contra os manuais ou, de modo mais específico, contra os manuais de história do direito. Na verdade, considero efetivamente que para a consolidação de uma área existe uma necessidade real (tanto no campo científico quanto no campo pedagógico) de que circulem bons manuais, manuais que se transformem em livros de referência ou em pontos de partida para a pesquisa, além de servirem, naturalmente, como um guia didático para os estudantes. Uma área sem bons manuais se enfraquece. E na verdade existem no Brasil, por outro lado, alguns (poucos) bons manuais dentro da própria disciplina de história do direito. E a área anseia que outros, de qualidade, surjam. A crítica que aqui se estabelece é outra (que imagino que possa se estender para várias disciplinas da própria “grande área” do direito em geral): o problema geralmente começa a acontecer quando 1) os manuais são orientados única e exclusivamente para um mercado consumidor, voltando-se as costas para toda e qualquer discussão acadêmica séria que se desenvolve no âmbito da própria área; 2) quando se imagina que o “gênero” manual deve ser o primeiro passo no trabalho de um investigador (que resolve começar seu percurso científico com uma obra de síntese) quando na verdade seria desejável que fosse um “gênero” manejado depois de tantos outros (e preferencialmente num ponto avançado da carreira de investigação); e 3) quando se busca dentro de uma determinada área fazer uma abordagem de “síntese” quando ainda não há suficiente material de “análise”. Afinal, sem produção crítica e séria desenvolvida de modo suficiente em uma área (artigos científicos, investigações de mestrado e doutorado, comunicações de congresso e outros possíveis gêneros mais ‘monográficos’) como se torna possível estabelecer uma síntese sólida e confiável?

34De outro lado (dentro deste campo de tensões específico) a historiografia jurídica brasileira, como contraponto, tem assistido a uma crescente e enorme produção mais “analítica”. Efetivamente, no âmbito dos programas de pós-graduação brasileiros,16 têm havido uma significativa produção de dissertações de mestrado e teses de doutorado na área da história do direito, contemplando pesquisas inéditas e bastante específicas, o que tem ajudado muito a área a desbravar campos ainda virgens desta área de conhecimento. Além disso, muitas revistas especializadas relevantes têm multiplicado o espaço de investigações de história do direito,17 além de algumas editoras terem aberto importante espaço para coleções bibliográficas na área de história do direito.18 Para além disso, tem crescido o número (e a importância) dos congressos da própria área de história do direito,19 quando tem havido a possibilidade de submissão e apresentação de trabalhos inéditos (e analíticos), com base em critérios academicamente sólidos, para esta área do conhecimento.20 Ou seja, existe um campo promissor – e crescente no que diz respeito à maturidade da área de conhecimento – que apontam para um futuro promissor na disciplina de história do direito no Brasil também no que diz respeito às suas formas de abordagem.

7. Conclusões

35Como modo de concluir este texto, talvez seja válido externar algumas avaliações prospectivas sobre a história do direito no Brasil, sopesando de que modo ela aponta para o futuro em alguns dos seus vetores fundamentais e também como ela se caracteriza de modo mais geral (inclusive de modo comparativo com outros modelos estrangeiros) para tentar apreender alguns de seus marcos característicos – se é que será possível detectar algum.

36Um primeiro dado interessante é que a história do direito tem sido constituída como área de juristas (de modo prevalente), mas não só de juristas. Talvez pelo grande espaço de ensino que se abriu nas abundantes faculdades jurídicas, acumulado com o fato de que a área no Brasil efetivamente teve que passar (como ainda está passando) por uma fase de consolidação, acabou sendo freqüente que aqueles que se ocupam da cadeira de história do direito fossem também profissionais formados ou pós-graduados nas faculdades de história. Isso quer dizer que muitos historiadores (e em alguns casos, cientistas políticos) passassem a se ocupar de história do direito dentro das faculdades jurídicas.21 Esse fenômeno teve e tem um lado positivo e outro lado negativo: o positivo é que são trazidas para dentro das faculdades jurídicas novas abordagens disciplinares, novas técnicas de investigação (sobretudo aquelas ligadas às fontes) e nova reflexões metodológicas que, sem dúvida, só podem fazer bem ao ambiente jurídico (que, na maioria das vezes, ainda se ressente de isolacionismo e formalismo exacerbados). Por outro lado, não raro este fato também tem trazido conseqüências negativas: elas podem ocorrer quando o profissional externo à área do direito opera nas faculdades ignorando completamente o campo jurídico – o que ocorre seja por “defesa” das suas próprias credenciais disciplinares, seja por preconceito e desconhecimento das credenciais do conhecimento jurídico,22 seja por uma mistura das duas coisas. Isso pode eventualmente ocasionar um “diálogo de surdos” do ponto de vista pedagógico. Por outro lado, nem tudo está a salvo quando são os “juristas” que se ocupam da disciplina histórico-jurídica. Muito frequentemente são os romanistas a “herdarem” uma cadeira de história do direito (e acabam por reproduzir quase que inteiramente suas tradicionais “approaches” disciplinares), quando não ocorre, pura e simplesmente, de um diletante curioso de alguma disciplina mais “aplicada” (como o direito civil, por exemplo) a se ocupar do ensino da história do direito. Neste caso, muitas vezes quase que todos os velhos problemas da abordagem da história feita pelo jurista se reproduzem.23 Ou seja: para finalmente se resolver este dilema e os problemas que daí decorrem, será necessário, de um modo geral que a área se sedimente e se consolide.

37Uma segunda característica marcante da historiografia jurídica brasileira é o fato dela estar em “diálogo” com outras formas de abordagem teórica. Pode-se dizer que a história do direito brasileira tem se mostrado em grande medida como sendo dotada de uma vocação “teorizante”. Há, ao que parece, uma atração pelas categorias mais amplas, um pendor “conceptualizante”. Aliás, muitos dos pioneiros do momento de renascimento da história do direito no Brasil que hoje têm produção relevante na área são provenientes originalmente de áreas disciplinares vizinhas como a filosofia do direito ou a sociologia do direito. Em parte por isso, e em parte por certas características próprias do próprio ambiente acadêmico brasileiro nas faculdades de direito, o fato é que são muito freqüentes abordagens histórico jurídicas que aliam uma análise de fontes (sejam elas arquivísticas ou sejam elas doutrinais) com formas de análises fortemente calcadas em sociólogos, cientistas políticos e filósofos (como Max Weber, Karl Marx e algumas de suas derivações latino-americanas, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, etc.). Com esse pendor teórico, a historiografia jurídica brasileira – ao menos neste momento inicial – parece tender de um modo geral para formas de análise um tanto mais generalizantes (por vezes conclusões que alcançam avaliações fortes sobre o presente), reforçando seu perfil, por assim dizer, “critico”.

38Com isso, enfim, chega-se a uma terceira e última “marca” diferencial da historiografia jurídica brasileira atual. Junto um grande pluralismo de métodos e de abordagens24 (que tem se revelado relativamente “tolerante”), está-se criando um perfil científico bastante peculiar e específico, se comparado aos casos europeus (mesmo aqueles que mais têm servido de inspiração aos historiadores do direito brasileiros) ou também se comparados aos vizinhos latino-americanos (com quem, de qualquer modo, os brasileiros têm estabelecido um contínuo e frutífero diálogo).

39A historiografia jurídica brasileira, dentro de seus impasses e dores de nascimento (ou de renascimento), tem, assim, mostrado personalidade e produção. Não se descura do fato – que ademais é óbvio – que se trata de uma disciplina em plena consolidação, e o fato de estar ainda em “processo” lhe traz alguns problemas que são próprios do seu crescimento. De todo modo, o caminho para a frente - com passos cautelosos, mas firmes, seguros e com qualidade – parece inquestionável. O deserto ficou para trás. E o vulcão, oxalá, continuará belo e vistoso, mas com atividades e erupções mais controláveis e previsíveis.

Notes
* Professor (e atual diretor) da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil. Pesquisador do CNPq. Presidente do Instituto Brasileiro de História do Direito (IBHD).
** Agradeço a leitura crítica e as gentis observações feitas sobre este texto pelos seguintes professores: Samuel Barbosa, Airton Seelaender, Luis Fernando Pereira, Walter Guandalini Junior e Christian Lynch. Mas nenhum deles é responsável, naturalmente, pelas conclusões aqui expostas
1. Enfatiza-se aqui que o texto aborda a história do direito como disciplina dentro das faculdades de direito brasileiras. Isso porque se o foco estivesse apenas na produção de algum tipo de conhecimento histórico-jurídico (mesmo nos períodos em que a disciplina não existia nos currículos e em que a área não tivesse estruturada) algumas conclusões seriam diferentes.
2. Como demonstra P. Burke, A história social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot, Rio de Janeiro 2003. Na seara histórico jurídica, entre tantos exemplos possíveis, vide os estudos centrados no Instituto Antonio de Nebrija de Estúdios Sobre La Universidad, sediada na Universidad Carlos III de Madrid, com seus importantes Cuadernos e também uma importante coleção bibliográfica (“biblioteca”). Por último, deste centro de pesquisas, vide M. Martinez Neira, A função constitucional da história do direito na doutrina liberal, in: R. M. Fonseca, A. L. C. L. Seelaender (Hg.), História do direito em perspectiva: do antigo regime à modernidade, Curitiba 2008, S. 79 f.
3. Sobre estes momentos iniciais de formação dos cursos jurídicos no Brasil, vide A. Venâncio Filho, Das arcadas ao bacharelismo, São Paulo 1982, S. 13 f.
4. Esta Constituição, no seu art. 179, apontava para o seguinte: “a inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade é garantida pela Constituição do Império pela maneira seguinte: (...) XXXIII - Colégios e universidades onde serão ensinados os elementos da ciência, das belas letras e artes”.
5. Venâncio Filho, Das arcadas ao bacharelismo (Anm. 3), S. 19-20.
6. Vide, sobre o tema, D. Rudnicki, Dani, O Estatuto do Visconde de Cachoeira e os debates parlamentares sobre o ensino jurídico brasileiro ocorrido entre 1823 e 1827, in: A. Carlini, D. T. Cerqueira, J. C. A. Almeida Filho (Hg.), 180 anos do ensino jurídico no Brasil Campinas, Millennium, 2008, págs. 77 e segs.
7. Venâncio Filho, Das arcadas ao bacharelismo (Anm. 3), S. 20.
8. I. Martins Junior, História do direito nacional, Brasília 1979. A primeira edição é de 1895.
9. Aliás, a partir de 1995, com o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, ocorre uma mudança no ensino superior brasileiro marcante: as exigências para abertura de novos cursos superiores são modificadas e observa-se uma verdadeira “explosão” de novas faculdades privadas de Direito, sobretudo até 2004 ou 2005, quando o próprio mercado de ensino aparenta esgotar-se em vários lugares do país. Até lá, todavia, houve uma multiplicação sem precedentes do número de instituições e de vagas no ensino superior (hoje, no Brasil, há mais de 1.100 faculdades de Direito). Infelizmente, a esta ampliação quantitativa não correspondeu, necessariamente, a um incremento qualitativo.
10. A. M. Hespanha, A história do direito na história social, Lisboa 1978.
11. Infelizmente nota-se, desde meados dos anos 1990, uma certa “crise” disciplinar do direito romano nas faculdades o que é um fato a se lamentar. Praticamente localizamos estas cadeiras somente nas faculdades “tradicionais” que já tinham um certo acúmulo em seu estudo. Nas novas faculdades, o direito romano é quase que ausente. Isso talvez se deva a dois fatores. O primeiro decorre de uma confusão: muitos entenderam que a emergência da história do direito no Brasil (que coincide com a crise romanista) iria substituir a cadeira de direito romano, o que não aconteceu. Assim como o direito romano parece ter barrado por muito tempo o “renascimento” da história do direito (como se sustenta acima), a emergência da história do direito parece ter impactado – em vista deste mal-entendido disciplinar – no âmbito acadêmico do direito romano. A segunda decorre de uma dificuldade da própria área romanista em renovar-se no plano teórico e metodológico. Não houve um maior esforço de “historicização” de seu campo de investigações para superar os anacronismos e paradoxos que afetavam tantas das abordagens que ali se podiam encontrar. Como conseqüência, cada vez mais raras se tornaram novas gerações especializadas neste campo, o que aprofundou sua crise.
12. Para maiores digressões a respeito, vide R. M. FONSECA, Introdução teórica à história do direito, Curitiba 2009.
13. Para usar a expressão das “teses sobre o conceito da história”, de Benjamin: W. BENJAMIN, Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política, São Paulo 1987, S. 222 f.
14. P. Grossi, História da propriedade e outros ensaios, Übersetzung von Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca, Rio de Janeiro 2006; P. Grossi, Mitologias jurídicas da modernidade, Übersetzung von Arno Dal Ri Jr., Florianópolis 2004; P. Grossi, O direito entre o poder e ordenamento, Übersetzung von Arno Dal Ri Jr., Belo Horizonte 2010; P. Grossi, Para além do subjetivismo jurídico moderno, Übersetzung von Ricardo Marcelo Fonseca, in: Fonseca, Seelaender, História do direito em perspectiva cit., S. 19-29; P. Grossi, Primeira lição sobre direito, Übersetzung von Ricardo Marcelo Fonseca, Rio de Janeiro 2006. E está no prelo, com publicação prevista para o segundo semestre de 2012, seu L’ordine giuridico medievale (“A ordem jurídica medieval”).
15. Para citar somente os livros mais emblemáticos para a área de história do direito: A. M. Hespanha, A história do direito na história social, Lisboa 1978; A. M. Hespanha, As vésperas do Leviathan, Coimbra 1994; A. M. Hespanha, Guiando a mão invisível: direitos, estado e lei no liberalismo monárquico português, Coimbra 2004; A. M. Hespanha, (Hg.), Justiça e litigiosidade: história e prospectiva, Lisboa 1993; A. M. Hespanha (Hg.), Poder e instituições na Europa do Antigo Regime, Lisboa 1984; um tanto mais recentes – e publicados especificamente no Brasil: A. M. Hespanha, Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio, Florianópolis 2005; A. M. Hespanha, O direito dos letrados no Império Português, Florianópolis 2006; A. M. Hespanha, Imbecillitas: as bem-aventuranças da inferioridade nas sociedade de Antigo Regime. São Paulo 2010; A. M. Hespanha, Hércules confundido, Curitiba 2009; e A. M. Hespanha, A política perdida: ordem e governo antes da modernidade, Curitiba 2010.
16. E aqui cito alguns, apenas a titulo exemplificativo: na URGS, UFSC, UFPR, USP, UFF, Universidade Gama Filho, UFRJ, UFMG, PUC/MG e UnB, UFPE e UNIFOR.
17. São exemplos emblemáticos as revistas dos programas de pós-graduação da UFSC e da UFPR. Outro sintoma eloqüente foi o fato da tradicionalíssima Revista do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), publicada continuamente desde 1839 e que detém altíssima classificação no sistema QUALIS da CAPES, ter dedicado um numero inteiro (revista numero 452, ano 172, jul/set de 2011) a investigações histórico-jurídicas.
18. Como a Juruá, de Curitiba, a UNIJUÍ, de Ijuí, a Fundação Boiteux, de Florianópolis e a Del Rey, de Belo Horizonte.
19. Aqui é necessário registrar o papel que o IBHD (Instituto Brasileiro de História do Direito) tem desempenhado neste sentido: fundado em 2002 em São Paulo, esta associação científica vem promovendo, dentre outras iniciativas, uma série de congressos, alcançando hoje uma abrangência praticamente nacional e convertendo-se em pólo catalisador da área no Brasil. Os congressos têm sido marcados pelas seguintes características: a) imensa pluralidade metodológica, de modo a repelir quaisquer formas de ortodoxia que represem a área; b) apesar disso, formas variadas de “ecletismos” e “diletantismos” metodológicos não são bem assimilados, valendo como premissa maior o valor e a seriedade acadêmica das análises; c) junto à consciência de construção disciplinar, grande abertura interdisciplinar (sobretudo para faculdades de história, ciência política e ciências sociais); d) diálogo com os juristas do direito positivo que estejam culturalmente abertos para esta troca acadêmica; e) intercâmbio com pesquisadores de ponta dos países estrangeiros com tradição consolidada na área de história do direito (como por exemplo Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, Argentina, México, etc).
20. No V Congresso Brasileiro de História do Direito (ocorrido em Curitiba entre agosto e setembro/2011), por exemplo, houve a aprovação (e apresentação) de cerca de 130 trabalhos inéditos nos “Grupos de Trabalho”.
21. Desafortunadamente este “intercâmbio” não ocorre nas faculdades de história, onde os juristas são ausentes. Aliás, há no Brasil uma importante quantidade de historiadores envolvidos com temas, por assim dizer, jurídicos (sobretudo com alguns temas afetos à escravidão e as ações judiciais de liberdade, na análise da administração colonial e imperial, etc.). De qualquer modo é difícil encontrar historiadores (com algumas notáveis exceções), dentro das faculdades de história, que definam a si mesmos como “historiadores do direito”. No máximo, investigadores que se ocupam da “história social da justiça”.
22. Não raro, um historiador (ou cientista político ou sociólogo) avalia epistemologicamente o direito como uma esfera meramente política ou meramente social, perdendo deste modo o alcance teórico de muitas especificidades do objeto que só podem ser bem aquilatadas pelo próprio saber jurídico. Ou, eventualmente – ainda pior – considera epistemologicamente nulo o campo do direito. Ou seja, ao não respeitar seu objeto de estudo, não bem o compreende.
23. Este tipo de avaliação sobre os problemas de ensino da disciplina histórico jurídica nas faculdades de direito são, obviamente, feitas de modo generalizante. Não se olvida o fato de que em muitas das faculdades existe já a esta altura um ensino e uma pesquisa altamente profissionalizada e competente na nossa disciplina.
24. Complementam-se, como modos diversos de abordagem, história institucional com história do pensamento jurídico; abordagens mais descritivas e abordagens quase integrantes da história da filosofia; história dos conceitos alemã com história do pensamento jurídico italiana, etc.
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(Fußnotenzählung korrigiert am 23. Oktober 2012)